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quinta-feira, 16 de julho de 2015


"Minha principal angústia e a fonte de todas as minhas alegrias e sofrimentos desde a juventude tem sido a incessante, impiedosa batalha entre o espírito e a carne... e minha alma é a arena onde esses dois exércitos têm lutado."

 “ – Ele é o Senhor, não é? Pode, portanto, fazer o que bem entende. Se ele não fosse capaz de cometer injustiças, que tipo de Onipotência teria?”
“Pilatos sorriu:
 – O que quer dizer verdade?
O coração de Jesus contraiu-se de tristeza. Assim era o mundo. Assim são os governantes. Eles perguntam o que é a verdade e riem.”

Só pelo título já é possível conjeturar as razões pelas quais este livro foi “amaldiçoado” por diversos grupos religiosos conservadores e, obviamente, pela Igreja acabando por ir parar naquele badalado rol de obras que os fiéis não devem ler se desejarem ir para o Céu: o Index Librorum Prohibitorum.
Eu achava que seria algo desrespeitoso, grosseiro ou caricato, que justificasse tanta perseguição e condenação da obra, mas o que vi foi um livro maravilhoso no qual o autor traça um formidável exercício criativo. Jesus é representado de forma totalmente humana, inseguro e vulnerável às tentações da carne, mas isso de nenhuma forma diminuiu ou ridicularizou sua imagem para mim (eu sou cristão: não que isso faça diferença). Para mim não é necessário ter de escolher acreditar em um ser inalcançável e perfeito ou num ser humano de carne e osso como nós, e ainda assim ser “divino”, capaz de se sacrificar por seus ideais e por amor, acima de tudo. Na verdade, a representação física de um ícone, a meu ver, tende a aproximar o adorador à coisa/ser adorado, mostrando que tal ícone é palpável, mais real, não inteiramente etéreo.
Kazantzakis fez uma excelente releitura da história de Cristo, sem adulterar os evangelhos, mas recriando a trajetória do Salvador (particularmente seu calvário pessoal, crivado de tentações) num contexto carnal, material, como ele bem explica já no prólogo, o qual reflete o conflito entre a carne e o espírito que acompanha não apenas o personagem, mas os seres humanos em geral, independentemente de crença – ou falta dela.
Naturalmente, por contexto e temática, “A última tentação de Cristo” lembra o também controverso livro de José Saramago, “O evangelho segundo Jesus Cristo”, mas é possível notar que o primeiro é mais formal, simples e sensível, apesar da escrita vigorosa, enquanto o livro de Saramago possui uma abordagem mais crua, rigorosa e preocupada com a estética narrativa que caracteriza o autor.
Finalizando, recomendo muito “A última tentação de Cristo” aos leitores que têm mente aberta e ávida por novas perspectivas (do ponto de vista literário e ficcional, ressalte-se), deixando de lado convicções religiosas durante a leitura, porque este não é um livro com a finalidade de ofender ou abalar os pilares de nenhuma crença. É, sim, um livro provocante, mas por suscitar reflexões muito mais intrínsecas do ser humano: suas angústias, aflições e dúvidas atemporais entre a carne (matéria) e a essência que nos define (o espírito). Nesse aspecto é uma obra-prima.


Cena do filme "A última tentação de Cristo"(1988), de Martin Scorsese, adaptado do romance de Kazantzakis
domingo, 11 de janeiro de 2015


Começando como uma brincadeira sobre intimidade de casal, certa noite o médico Fridolin e Albertine trocam confidências sobre suas fantasias sexuais envolvendo terceiros. A confissão de Albertine, entretanto, mais tórrida e realista, desperta em Fridolin certo desespero e insegurança em relação à esposa e, a partir de então, ele se lança numa mórbida jornada sexual, onde o erotismo disputa espaço com uma complexa, mas sucinta análise psicológica dos personagens envolvidos.
Depois de saber da “traição” – apenas fantasiosa – da esposa, ao afirmar ter desejado outro homem há muito tempo, Fridolin, cego de ciúmes, é chamado às pressas para atender um paciente no meio da noite e sai pelas ruas de Viena perturbado, tendo um encontro constrangedor com a filha do tal paciente (falecido antes que ele chegasse lá), uma mulher que alimenta fantasias com ele. Retornando à sua casa, ele encontra uma prostituta. Em ambos os casos, a perturbação em que se encontra o impede de trair Albertine, embora as circunstâncias o favorecessem. Continuando sua andança, reencontra um amigo que acaba revelando-lhe detalhes sobre seu novo trabalho, que consiste em tocar piano em certas reuniões secretas, nas quais os participantes usam máscaras e promovem orgias ritualísticas. Interessado, Fridolin manifesta vontade de ir a uma dessas reuniões, embora seu amigo demonstre contrariedade. Enfim, arranjando um meio de entrar como penetra em uma dessas reuniões, Fridolin defronta-se com algo diferente de qualquer coisa que pudesse ter imaginado. A partir de então, sonho, realidade, luxúria e culpas misturam-se numa torrente de emoções e sentimentos confusos para o protagonista.
Como transparece no título da obra (no original, “Traumnovelle”), do austríaco Arthur Schnitzler, “Breve romance de sonho” é uma obra curta, onírica, sobre o amor em sua faceta mais perturbadora, surreal. Como contemporâneo de Freud e visivelmente influenciado por suas teorias de interpretações psicanalíticas dos sonhos, Schnitzler evidencia as neuroses da vida conjugal e da infidelidade sob uma perspectiva tão sensual quanto assustadora, de modo que o livro oscila entre ser uma história de amor e de terror. Unindo elementos eróticos a uma abordagem sombria das ânsias dos personagens nessa busca por satisfação pessoal, carnal, Schnitzler constrói uma novela densa, em que, os segredos, as vergonhas e as frustrações dos protagonistas a respeito de si mesmos e de seus parceiros criam uma tensão simultânea, mas sutil. A escrita do autor permeia a obra de um suspense que beira o terror psicológico enquanto o leitor é arrastado para um mundo instintivo onde sexo e medo estão entrelaçados de modo impressionante.
Provavelmente, como o leitor terá notado, a história soa familiar; de fato, o livro de Schnitzler deu origem ao famoso – e último – filme de Stanley Kubrick, “Eyes wide shut” (“De olhos bem fechados”), com Tom Cruise e Nicole Kidman. Com algumas modificações no roteiro, como a mudança na ambientação e no nome dos personagens, o filme de Kubrick capta muito bem a essência da excelente obra em que se inspira.

Pôster do filme "De olhos bem fechados" (Eyes wide shut, 1999), de Stanley Kubrick

O livro "Breve romance de sonho" está disponível para download, em PDF, NESTE LINK.
segunda-feira, 29 de dezembro de 2014


O microbiologista Felix Rossi, juntamente com um pequeno grupo de outros cientistas, está examinando o Santo Sudário (o tecido que supostamente serviu de mortalha ao corpo de Jesus Cristo). Entretanto, secretamente, o Dr. Rossi furta alguns fiapos ensanguentados do Sudário, com o audacioso plano de realizar um clone do Filho de Deus. A partir de então, ele dá andamento a uma jornada exaustiva para a consumação deste plano, em especial a busca por uma “mãe” para o clone, caso a experiência dê certo.
Em síntese, essa é a ideia central do livro de Jamilla Lankford, um projeto que do ponto de vista informativo funciona bem melhor do que como ficção. Expliquemos o porquê.
Como trata de uma dupla polêmica (clonagem e a “humanidade” de Cristo), o romance é bastante competente nas suas descrições científicas, abordando a clonagem sob uma perspectiva “didática”, muito acessível à compreensão dos leitores que, assim como eu, não têm graduação em Biologia ou especialização em Engenharia genética. As informações sobre o Sudário também são resultado de competentes pesquisas, embora essa história de “ressuscitar” o Salvador através da tecnologia não seja necessariamente uma novidade na literatura de ficção científica.
Lankford, entretanto, apresenta seu romance sob uma perspectiva mais humanizada – uma vez que seu projeto tem em vista a criação de um ser humano como outro qualquer através da manipulação de DNA, deixando de lado, até certo ponto, a condição divina de Cristo. Até aí tudo bem; contudo, a história criada pela autora para abordar esse tema carece de ação e até mesmo de personagens mais interessantes e polivalentes. Excetuando-se o protagonista, Dr. Felix, cujas motivações para a criação do clone são realmente interessantes e valem a leitura, os demais personagens são rasos e não têm o peso necessário para ter importância na história. Até mesmo a mãe que Felix arranja para o clone é uma personagem frágil e sem graça, o que é justificado pelo fato de ela ser uma “reconstrução” de Maria: abnegada e inteiramente entregue à sua fé.
 De fato, nota-se que Lankford tenta reconstruir, a seu modo, uma Segunda Vinda de Cristo, traçando paralelos entre a sua obra e o texto bíblico. Assim, há uma Maria (Maggie), que aceita a missão de ser a mãe do Filho de Deus, um José (Sam), o homem que a ama, mesmo sem poder tê-la fisicamente até o nascimento da criança e até um Herodes (o milionário Brown, que vê seu império ameaçado pela vinda desta criança e pretende executá-la).
Todavia, a história flui muito lentamente, com um desenvolvimento previsível ao longo de suas mais de 380 páginas. Talvez a falta de reviravoltas no livro, bem como a carência de tensão tenha sido a intenção da autora, mais preocupada com os pequenos dramas pessoais dos personagens, em uma busca espiritual rasa do que com os desdobramentos reais da experiência do Dr. Rossi, os quais são apenas superficialmente apresentados no decorrer do livro, ganhando mais consistência com a proximidade do clímax. Esse ápice é o ponto mais importante do texto e pelo menos aqui a autora costura o nascimento da criança com os eventos turbulentos decorrentes dele de forma muito verossímil e frenética, apresentando o caos sensacionalista da mídia, inclusive, depois que a notícia do clone vaza abertamente. Contudo, passados esses bons momentos, o livro volta ao seu patamar original de obra rasa e encerra-se com um final meio frustrante, provavelmente aberto a uma sequência.
Para finalizar, se me perguntam se “O Clone de Cristo” é um livro ruim, eu respondo que depende do que se espera dele: se é um romance policial à maneira de Dan Brown, esqueça, pois no livro de Lankford não há a ação vertiginosa nem os personagens enigmáticos que acarretam tantas reviravoltas ao longo do texto num ritmo de tirar o fôlego. Não, nada disso.

Ainda assim, para mim a leitura valeu a pena pelas informações científicas e pelo embate entre ciência e religião – um de meus temas prediletos – mesmo que a autora não tenha sido tão bem-sucedida na construção da história. 


sexta-feira, 7 de novembro de 2014




Constance, uma aristocrata britânica criada no seio de uma família relativamente liberal, é casada com Clifford Chatterley, que retorna da Primeira Guerra paralítico em consequência do conflito. O casal vive em uma majestosa propriedade rural inglesa, acompanhado apenas de alguns criados e da enfermeira de Clifford (que, posteriormente torna-se governanta da casa). Naquele ambiente bucólico, Constance conhece Oliver Mellors, o guarda-caça do marido e acaba por se envolver em um tórrido relacionamento sexual com ele.
Basicamente é esta a premissa do romance de David Herbert Lawrence; contudo, a obra não fica presa no modelo simplista de mais um livro sobre adultério feminino. Publicada já no século XX, a obra de Lawrence é estruturalmente inovadora em vários aspectos, sendo, sem dúvida, a abordagem sexual aberta um dos mais relevantes. Lawrence utiliza, nas constantes descrições e diálogos eróticos uma linguagem bastante crua e direta, sem eufemismos no que se refere ao ato sexual, que é mencionado em detalhes objetivos. O tratamento liberal dado ao sexo justifica por que “O amante de Lady Chatterley” gerou tanto escândalo na sua época e até problemas judiciais, o que resultou na censura de trechos mais explícitos do livro. Apenas à beira da década de 60 o texto integral foi liberado e chegou a ser conhecido amplamente.
Como já mencionado, o romance difere da maioria das histórias clássicas sobre adultério da literatura ocidental (como ‘Madame Bovary’ e ‘O primo Basílio’), especialmente porque, neste caso, a mulher tem plena consciência de seus atos, não estando seduzida pelo homem, deixando-se levar por inércia e ilusões românticas. Longe disso, Constance foi educada sob frouxos e inovadores princípios morais (já não era virgem quando se casou) e compreende seu papel ‘feminista’ como ser humano ativo, sem a passividade característica das personagens femininas nas obras do século XIX. Lady Chatterley é um símbolo da mulher do novo século, que anseia por liberdade sexual e a alcança tanto em ações quanto em pensamento. Não são raras as ocasiões em que Constance conversa abertamente sobre sexo e orgasmo com o marido inválido (ele deseja um herdeiro e até sugere que ela engravide de alguma ‘aventura’ externa) e com Mellors, de quem realiza as fantasias e vice-versa.
Entretanto, a obra de Lawrence projeta-se além do apelo carnal imperioso dos personagens: ele discute a modernização, acima de tudo; seja a própria concepção moderna do sexo, isto é, o desfrute dele sem o pudor hipócrita e os estigmas das épocas passadas, seja através do conceito mais concreto da palavra ‘moderno’ numa escala global: a industrialização. O livro fala amplamente acerca da industrialização que cada vez mais mecaniza o ser humano e suas relações na sociedade, evidenciando, paralelamente, o contraste entre a zona rural – onde se passa a maior parte da história – e a cidade, que cresce e gera lucros exorbitantes para alguns, enquanto outros são explorados em sua mão de obra.  
De uma forma ou de outra, o livro de Lawrence lida com a dualidade; figurativamente, ressaltando a força e vigor instintivo e emocional do ser humano apoiados em um ambiente natural (o campo) e a perda da naturalidade de suas relações (inclusive a intimidade) através do artificialismo moderno e da mecanização da sociedade urbana. Nota-se, por fim, que “O amante de Lady Chatterley” é um romance paradoxal e complexo, insinua-se pelos caminhos da psicologia dos personagens e de questões sociais, as quais se mesclam ao erotismo e resultam em uma obra relevante. 


Pôster da adaptação cinematográfica de "O amante de Lady Chatterley", de 1981, dirigida por Just Jaeckin. Como grande parte dos clássicos, o romance teve várias versões para o cinema.


Este livro está disponível para download em PDF NESTE LINK.


terça-feira, 21 de outubro de 2014



Entre os maiores mistérios existenciais da espécie humana, um dos mais aterradores, juntamente com o drama da própria morte, é a existência do Mal; não um mal metafórico, figurativo, ou ancorado em princípios éticos de comportamento, mas o Mal palpável, demoníaco, referente à existência do Diabo, do Inferno e de sua influência perniciosa e destrutiva sobre o ser humano. Tal perspectiva, que não deixa de estar intrinsecamente ligada a religião, sempre sofreu ‘intervenções’ por parte da ciência e, em particular, da medicina, como se uma delas tivesse o poder de anular ou descartar inteiramente a outra.
                Baseando-se com maestria nesse conflito entre fé e ciência relativamente à demonologia, William Peter Blatty construiu um dos mais perturbadores e célebres romances de terror de todos os tempos: “O Exorcista”, êxito que se repetiu na adaptação cinematográfica realizada logo após seu lançamento.
                Em resumo, trata-se da história de Chris McNeil, uma atriz e mãe de uma garota pré-adolescente que passa a manifestar um comportamento bizarro e violento, inexplicavelmente. A princípio, a garota (Regan) é submetida a uma extenuante série de exames – alguns deles bastante invasivos – a fim de se diagnosticar a causa de seus problemas aparentemente psicológicos. Contudo, após todos os exames, onde fica claro que ela não tem nenhum problema mental, e ao passo que a situação ainda assim se agrava cada vez mais, resta apenas recorrer a um meio “alternativo”: um exorcismo.
                A partir de então, obra de Blatty desenvolve-se por meio da alternância entre a visão científica para o exorcismo (através do termo autossugestão) e a perspectiva da Igreja, a qual ainda crê na sua eficácia, mas exige comprovação de que os supostos endemoninhados não são apenas portadores de desvios psicológicos. Para promover essa visão dual sobre o exorcismo, Blatty apresenta Damien Karras, um padre e psiquiatra que está sofrendo de uma crise de falta de fé, acentuada com a morte recente da mãe. Caberá a ele a árdua missão de desvendar e lidar com a força maligna que está possuindo Regan.
                Os personagens de Blatty, com ênfase em Chris e Karras, são multidimensionais, abordados em suas diversas facetas psicológicas, o que por si só situa o livro num patamar muito mais elevado do que o de mero horror. A história possui a densidade necessária para sugar o leitor a um universo de dúvidas quanto ao que acreditar. Os próprios conflitos existenciais de Karras e suas numerosas dúvidas entre a fé e a ciência o tornam um personagem genuinamente humano, no sentido mais simplista e limitado da palavra. Ele, sendo um clérigo, deveria exercer mais fé na sua crença, enquanto, por sua vez, sendo psiquiatra, poderia crer na medicina e na ciência como um todo de modo a corroborar seus princípios. Entretanto, o que vemos é um ser atormentado pelo vácuo da sua própria vida, fragilizado pelas perdas e que, num último esforço de se provar capaz, encara a pequena Regan como o desafio que pode, ainda que inconscientemente, redimi-lo e fazê-lo restituir sua própria fé, o que será alcançado com o auxílio de outro personagem, não menos importante: o ancião padre Merrin. Este ganha destaque já no final do livro, mas sua participação no desenlace da história é crucial.
                Longe de ser uma obra rasa de horror sobrenatural ou, como alguns pensam, um livro apológico sobre cultos demoníacos, “O Exorcista” é, antes de tudo, uma perturbadora viagem psicológica nos labirintos do bem e do mal, da ciência e da religião e suas ambiguidades. Há, sim, uma história sobrenatural aterradora, perversa, bem como detalhadas informações sobre cultos satânicos (com destaque na Missa Negra), possessões, exorcismos e sobre o demônio abordado na obra: Pazuzu.
                Uma história de terror profunda, mas, ao mesmo tempo, escrita com simplicidade, sem floreios nem pedantismo, aliada a uma grande riqueza de detalhes informativos, tudo isso contribui para fazer de “O Exorcista” um livro essencial aos amantes de obras inteligentes, independentemente do gênero. 

Pôster da premiada adaptação de "O Exorcista", de William Friedkin, de 1973

*O livro está disponível para download (PDF) NESTE LINK.
sexta-feira, 3 de janeiro de 2014




Obra-prima de José de Alencar, correspondente à vertente indianista do Romantismo brasileiro, “Iracema” é, com certeza, um dos romances mais populares do nosso país. Na obra, o leitor se depara com o vigor narrativo alencariano sob uma perspectiva estruturalmente bem construída, na qual o autor entrelaça o fictício relacionamento amoroso da protagonista indígena Iracema,  (a “virgem dos lábios de mel”) e o “branco” Martim, acrescendo a isto uma intensa pesquisa histórica, notável na própria tessitura do livro, que evidencia aspectos “reais”, como as referências constantes à colonização brasileira, sobretudo às lutas por conquista de terras nordestinas.
Um aspecto peculiar de “Iracema” é a sua linguagem extremamente elaborada, não apenas pelo rebuscamento característico de Alencar e, genericamente, do próprio período literário, mas no que se refere aos mecanismos linguísticos adotados pelo autor de maneira impressionante e não tão presente em suas outras obras (mesmo as demais indianistas “O Guarani” e “Ubirajara”). Alencar concilia a prosa do Romantismo com uma fluência poética rara, elevando o livro a um patamar superior ao de mero romance e já anunciando que é um autor visionário: em “Iracema”, ele escreve como se estivesse criando um poema lírico em prosa, demonstrando que é possível transpor o limite de que a prosa deve ser “organizada”, enquanto a poesia se permite maiores “liberdades” nos versos. Assim, ler “Iracema” é como contemplar um belo poema escrito com toda a idealização e lirismo pertinentes, por exemplo, à poesia de Gonçalves Dias; porém, a obra de Alencar consegue se adequar à prosa de maneira exemplar, constituindo um grandioso romance (apesar de sua brevidade em páginas). Outro elemento interessante, ainda referente à linguagem do livro, é a “indigenização” do vocabulário: Alencar teve o cuidadoso esforço de promover uma pesquisa acerca da linguagem indígena, crivando o romance de palavras e termos vernáculos, o que confere à obra uma maior nacionalização e verossimilhança na narração, ao mesmo tempo em que procura se distanciar de estrangeirismos.
Alguns leitores podem, contudo, encontrar certas dificuldades na leitura de “Iracema”, sobretudo aqueles que não têm muito contato com a literatura clássica, ou os que estão mais adaptados a livros cuja linguagem seja contemporânea. Na verdade, isto é bastante compreensível, uma vez que a leitura deste livro requer atenção redobrada até mesmo de quem está acostumado com as obras do período romântico. Duas observações podem ser de grande ajuda nestes casos: dar preferência às edições que possuam notas explicativas (as que contêm notas do próprio autor) e, a principal orientação, que chega a ser um clichê sem tamanho: ler por vontade própria e por iniciativa em querer conhecer o livro, não por pressão ou às pressas. No primeiro caso, a leitura será infinitamente recompensadora; no segundo, pode ser um ato desagradável e incompreensível – como, aliás, ocorre com qualquer outro livro, seja ele clássico ou não.


Pôster da adaptação de "Iracema", de 1979, realizada por Carlos Coimbra.

*Livro disponível para download NESTE LINK.
quinta-feira, 14 de novembro de 2013



                É sempre difícil escolher um livro em especial para ser objeto de análise e de uma apreciação – ainda que amadora e superficial – que dignifique a obra. Contudo, pegando carona na abordagem acerca das dualidades humanas na literatura, tão bem registrada por Fernanda Barros, julguei interessante falar algo a respeito de outro clássico que, sob uma perspectiva diferente, também tece intrigantes considerações sobre o tema.

                “Frankenstein”, obra aclamada de Mary Shelley, concebida entre pesadelos e inquietações da autora (tal qual “O Médico e o Monstro”, de Stevenson), é um livro verdadeiramente tenso e sombrio, do tipo que pode causar arrepios e desconforto no leitor. Entretanto, tais sensações estão mais relacionadas ao conteúdo crítico do livro do que pelo clima de terror propriamente dito (o qual, diga-se de passagem, não é tão destacado quanto o cinema pinta, de forma estereotipada). A obra possui, sim, todo um clima gótico e, por diversas vezes, depressivo, uma provável influência de Byron, amigo da autora; entretanto, o diferencial do livro é a discussão implícita sobre a dualidade da alma humana, a qual estão entrelaçados valores morais (bem, mal) e estéticos, como a ditadura da perfeição física.
                Em “Frankenstein”, o ponto de partida adotado é a obsessão pela ‘cura’ da morte ou, mais precisamente, a superação da mesma através de métodos ilícitos; tais métodos não são especificados, mas a autora faz menção a galvanismo e outros procedimentos científicos de efeitos discutíveis, que geram ainda controvérsias nos campos da medicina e da ética. Obcecado pela ideia de poder criar um ser vivo ‘melhorado’ através de experimentos bizarros, o Dr. Victor Frankenstein (personificação da ânsia insaciável do homem pelo conhecimento) constrói a famigerada e horrenda criatura dotada de vida, a quem logo despreza, ao tomar consciência – demasiadamente tarde – do quão desastrosa fora sua experiência. Horrorizado ao finalmente ver a sua criação concluída de maneira tão grotesca, Frankenstein, o criador, abandona o “monstro” à própria sorte.
                Mais do que simbolicamente, o abandono da criatura pelo criador nos faz refletir acerca do maniqueísmo e dos rótulos predeterminados pela aparência: quem é, afinal, o monstro? A criatura, cujo aspecto físico é repulsivo, mas é inicialmente inofensivo, ou o criador, homem respeitável perante a sociedade, que não quer assumir as responsabilidades que lhe são pertinentes diante do fracasso de sua obra? A dualidade da alma humana, em seus aspectos primordiais (bem e mal) é trabalhada de maneira representativa; o conflito é visto, sob uma visão superficial, como o mesmo de “O Médico e o Monstro”, embora aqui as personalidades aparentemente opostas estejam separadas em dois indivíduos distintos, não fazendo parte do mesmo organismo, como ocorre na obra de R. L. Stevenson.
O bem é representado pelo Dr. Frankenstein, enquanto o mal é sintetizado em sua criatura abominável... mas, até que ponto? Até que ponto os seres se conservam bons ou maus? Embora Frankenstein tenha tido em vista um progresso científico, o que devia encaixá-lo na categoria de “bom”, nota-se que ele possui ganas de se destacar por seu feito, tornar-se célebre, o que deve situá-lo numa categoria menos favorável do ponto de vista moral. Paralelamente, a criatura não é má por natureza; no início é apenas um ser confuso, que não sabe se comunicar, teme os homens e envergonha-se de sua triste figura física. O desprezo dos seres humanos pelo seu aspecto (note-se aqui a estética da beleza física implícita, mas evidente) o faz desgostar-se com a humanidade, sendo, por assim dizer, obrigado a odiá-la. Daí, surge o desejo de vingar-se, tornar-se odioso e mau, uma vez que fracassou na tentativa de “ser bom”. A vingança contra seu criador é, de fato, execrável, mas até certo ponto justificável pela Lei de Talião: olho por olho, dente por dente. Os sofrimentos e perturbações que ele impõe a Frankenstein são, afinal, pouca coisa comparados à vida desgraçada e forçadamente isolada que o monstro é condenado a viver.
Mary Shelley desejava escrever apenas um conto de terror que, nas palavras da própria autora, fosse capaz de gelar o sangue do leitor. Embora certamente ela tenha conseguido tal feito, pôde simultaneamente construir uma importante alegoria a respeito de valores e questões intrínsecas à existência humana. Some-se a isto uma linguagem fluente, rápida e dinâmica e será possível fazer clara ideia do conteúdo de seu livro monstruosamente humano.


"Frankenstein de Mary Shelley" (1994), de Kenneth Branagh: uma fiel e cuidadosa adaptação do livro clássico.

O livro "Frankenstein" está disponível para download, no formato PDF NESTE LINK.